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Em entrevista à RGB, o Doutor em Ciência da Informação, Odilon Neves:

‘‘Em uma definição bem simples, entendo a governança pública como sendo o conjunto de mecanismos que visam assegurar que os recursos públicos sejam adequadamente aplicados para alcançar os objetivos políticos e sociais.’’ Na sua visão, o que é a governança no setor público? Em uma definição bem simples, entendo a governança pública como sendo o conjunto de mecanismos que visam assegurar que os recursos públicos sejam adequadamente aplicados para alcançar os objetivos políticos e sociais. Essa definição coloca o foco da atuação governamental nos resultados e impõe a necessidade de equacionamento dos problemas públicos e das questões relacionadas à integração de interesses (ex.: dilema da agência e arena pública), além de outras questões derivadas das características socioeconômicas e culturais singulares de nosso país (ex.: disparidades sociais, cultura do “jeitinho”, coalizões etc.). Você ingressou no setor público em 1998. Como você vê a evolução da governança no governo federal brasileiro nos últimos 20 anos? É um conceito que já faz parte do dia a dia dos servidores? Foram imensos os avanços governança pública no período e contexto citados. A evolução dos mecanismos de avaliação e controle da gestão pública federal tem sido constante e, em boa parte, impulsionada pelo aperfeiçoamento dos órgãos de controle. Entretanto, cumpre salientar que tal aperfeiçoamento não ocorreu de forma simétrica no conjunto das organizações públicas federais, uma vez que há enorme disparidade de porte e de capacidade entre elas. Essa assimetria, nos anos iniciais, acabou por criar muitas dificuldades para muitos gestores públicos bem-intencionados, que se viram atulhados com novas demandas de controle, a despeito de suas efetivas condições de suportá-las. No sentido oposto, não se conseguiu com isso criar suficientes embaraços para os que atuam à margem dos mecanismos de avaliação e de controle. Essa assimetria tem sido gradativamente reduzida por uma série de ações voltadas ao aprimoramento e profissionalização das organizações públicas federais, bem como se observa uma maior flexibilidade e razoabilidade nos mecanismos e práticas de avaliação e controle. Assim, embora já seja possível observar os efeitos positivos desse amadurecimento da governança em alguns contextos e organizações, é ainda perceptível a existência de lacunas conceituais e práticas na atuação de boa parte dos servidores públicos federais. Trata-se de um amadurecimento necessário, porém gradual. Na sua opinião, quais são os principais desafios para a implementação da Governança no setor público? O primeiro grande desafio é o de avançar na maturidade do nosso processo político. Ainda temos dificuldade em exigir e avaliar a materialização dos anseios políticos e sociais em programas de governo (em época de candidaturas) e depois, de fazer com que os representantes se encarreguem de exigir e avaliar a transformação dos programas escolhidos pelo voto popular em projetos e ações que atendam a tais anseios. Sem essa conexão, abre-se uma lacuna em uma das funções básicas da governança: a de direcionar. Sem o adequado direcionamento, abre-se espaço para a prevalência de outros interesses, eventualmente contrários aos interesses coletivos. Somos ainda uma democracia jovem, em fase de amadurecimento, e que, aos poucos, está começando a aprender esse ofício. O segundo desafio está na maturidade de nossas instituições e nas características da burocracia estatal. A história da República, com pouco mais de um século, é marcada por uma sequência de crises e atribulações, além de uma forte inclinação ao populismo. Nosso pacto federativo é peculiarmente estruturado de forma a criar uma dependência dos demais entes federados em relação à União e isso interfere em uma série de outros processos políticos, distorcendo o modelo representativo. Alie-se a isso os efeitos da força de algumas corporações conjugada à ainda relativa fragilidade de algumas instituições democráticas que, por vez ou outra, são questionadas quanto à sua legitimidade. Como resultado, temos uma verdadeira balbúrdia administrativa, em que as políticas públicas não decorrem, necessariamente, dos anseios políticos e sociais e, por consequência, a configuração das estruturas e a distribuição dos recursos para a execução dessas políticas não decorrem, de fato, de um planejamento. Como é o trabalho de governança na Secretaria da Receita Federal hoje? A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil é um órgão específico, singular, subordinado ao Ministério da Economia e, por isso, segue as diretrizes de governança estabelecidas e consolidadas na Portaria ME nº 339/2020, que “Institui o Comitê Ministerial de Governança do Ministério da Economia e os Comitês e Subcomitês Temáticos de Apoio à Governança”, principal instância de governança do órgão, responsável por definir estratégias institucionais e diretrizes estratégicas transversais. Internamente, essas estratégias e diretrizes são desdobradas e administradas por estruturas especializadas, algumas das quais são precursoras desses temas na administração pública federal, a exemplo das estruturas de governança da tecnologia da informação, planejamento e avaliação institucional, gestão da inovação e de gestão de riscos, transparência e integridade. Destaque-se a preocupação constante do órgão com a prestação de contas e evolução dos mecanismos de gestão. Como exemplo disso, neste ano, foi realizada uma avaliação externa do grau de maturidade e aderência a padrões internacionais de administração tributária, utilizando o referencial internacional do TADAT (Tax Administration Diagnostic Assessment Tool). Foram avaliados diversos aspectos relacionados com a gestão e governança do órgão e os resultados foram utilizados para subsidiar o planejamento estratégico do órgão para o período 2021-2023.


Como o avanço da tecnologia e da inteligência artificial poderão impactar nas atividades de auditoria fiscal? Os impactos são profundos e tendem a ser cada vez maiores. A RFB já faz uso da inteligência artificial em vários de seus processos. A título de exemplo, podemos citar: chatbots no atendimento; sistemas especialistas para seleção nas alfândegas; inteligência artificial na análise de imagens de scanners; detecção automática de fraudes nos cadastros; aceleração da análise de processos administrativos; reconhecimento facial e geoprocessamento nos aeroportos; dentre outros. Considerando os volumes de demandas por serviços e as equipes atuais, já seria impensável realizar a administração tributária e aduaneira sem o uso dessas tecnologias. A expectativa é que elas se tornem cada vez mais presentes, principalmente nas tarefas de maior volume e repetitivas, de modo ampliar a capacidade de prestação de serviços e liberar a força de trabalho para a realização de outras atividades de maior valor agregado. O governo federal publicou recentemente o decreto que institui a estratégia federal de desenvolvimento (EFD) para o Brasil no período de 2020 a 2031. Como você avalia o planejamento estratégico governamental no país hoje? Esse é um dos passos mais importantes para a redução da lacuna anteriormente apontada em relação à dimensão do direcionamento. A ausência, até então, de uma perspectiva de planejamento de longo prazo tornava o planejamento de médio prazo (Planos Plurianuais) quase uma ficção, uma vez que lhe faltavam os alicerces fundamentais para a definição dos rumos a seguir. Costuma-se falar que as organizações públicas federais brasileiras são basicamente orientadas pelos seus orçamentos, com a observação de que nem esses conseguem ser apropriadamente executados. Com o advento da nova EFD, espera-se que, gradativamente, tal realidade seja transformada. Há, ainda, como anteriormente mencionado, um caminho a ser trilhado em direção ao amadurecimento da governança e da gestão pública e do adequado relacionamento entre ambas. No mundo globalizado e crescentemente descentralizado, os desafios não são poucos, mas estamos na direção correta. Estamos vivendo hoje uma grave pandemia mundial. Na sua visão, quais consequências a atual crise deverá trazer para o setor público brasileiro? Apesar das adversidades enfrentadas por pessoas e organizações, esse também pode ser um momento de oportunidades. É comum que nessas ocasiões estabeleçam-se condições singulares para o questionamento e a mudança de paradigmas, de modelos mentais e de outros aspectos organizacionais, que não seriam possíveis em outras circunstâncias. No mundo inteiro, a atual crise já provocou muitas mudanças, obrigando as pessoas e organizações a se adaptarem a novas formas de trabalho e de relacionamento com a sociedade, muitas vezes, de forma rápida e disruptiva. Esse cenário faz com que o papel do setor público se torne ainda mais importante para conter efeitos e acelerar medidas de contorno ou de solução de problemas. No Brasil, experimentamos ainda uma série de efeitos de outras crises (política, econômica e social) e, por isso, pode-se dizer que vivemos em um verdadeira turbilhão administrativo no setor público que, se por um lado aprofunda ainda mais os velhos problemas e cria novos, por outro abre a possibilidade de experimentação de novas alternativas de solução cuja força motriz é a necessidade de fazer mais com menos, mais rápido e com melhores resultados. A inovação passa a ser o caminho natural e, com isso, abre-se a oportunidade para a mudança de estruturas, processos e modelos cristalizados. Abre-se espaço para a tão esperada evolução do setor público brasileiro! Com perseverança, iremos debelar essas crises, mas não acredito em algo como uma “volta à normalidade”. As soluções utilizadas para o enfrentamento das dificuldades nos levaram a novos conceitos sobre o que é “normal”. As experiências de trabalhos colaborativos, reuniões por videoconferência, prototipação de soluções e laboratórios de inovação, dentre muitas outras coisas, chegaram para ficar e vão moldar novas formas de governança e de gestão. Nada será como antes. Tenho convicção de que essas mudanças propiciarão o alcance de patamares mais elevados de governança e de gestão no setor público. O governo federal discute há meses a realização de uma ampla reforma administrativa. O que pode ser feito para que o setor público brasileiro supere a atual crise de legitimidade? Alguns fatores explicam essa e outras crises de legitimidade que, de tempos em tempos, pairam sobre o setor público. O primeiro deles é a falta de transparência, característica marcante dessa proposta e de muitas outras coisas que se faz no governo. Vivemos em meio a uma cultura institucionalizada do sigilo que, na maioria das vezes, não protege os que realmente precisam de proteção e só servem de escudo às intenções que destoam dos interesses coletivos. Protegidos por múltiplas camadas de sigilos e outros subterfúgios, os inimigos do interesse público não se sentem obrigados a prestar contas de seus atos e dos efeitos que eles causam nas vidas de outros. Formam-se castas, coalizões e associações de todo o tipo e natureza com o propósito de preservar, proteger, ocultar e/ou justificar os interesses imediatos dessas próprias agremiações, em detrimento ao bem maior. Surge daí o segundo problema, o da falta de responsabilização. Na dificuldade de obtenção, divulgação e compreensão das informações necessárias para a adequada percepção e julgamento dos atos que se desviam dos anseios e autorizações da sociedade, o mal corre solto e fica impune. A cada passo dado pelos que buscam jogar luz e ampliar o alcance da visão da sociedade sobre os cantos obscuros da administração, dois passos são dados por aqueles que se dedicam a ampliar as sombras. As normas que cuidam da responsabilização precisam ser mais rígidas, mais simples, mais bem observadas e aplicadas a quem realmente deveria ser condenado pela norma ou pelo voto popular. Talvez assim possamos vir a deixar de ver pessoas de reputação ou de interesses duvidosos cuidando de temas e de áreas importantes do setor público. Por último, mas não menos importante, surge o problema da falta de responsividade. Os problemas acima citados acabam por deixar a máquina pública totalmente travada, impedida de ter um bom funcionamento e, com isso, incapaz de entregar à sociedade aquilo que era esperado. Uma vez que se alcance a remoção desses entraves é de se esperar que as engrenagens voltem a girar e a produzir os resultados desejados. Esses componentes, acrescidos dos elementos de sujeição e controle, formam a base do conceito de prestação de contas (accountability), contrapartida necessária da gestão aos instrumentos de governança. Quais serão, na sua visão, os principais desafios da gestão de pessoas no setor público nos próximos anos? Afirmei nas respostas anteriores a minha crença de que muita coisa ainda vai mudar e nada voltará a ser como antes. Novos processos, novas estruturas, novas demandas e novos serviços vão requerer novas competências o tempo todo. Os modelos atuais, prescritivos e centralizadores, de identificação, avaliação e equacionamento dessas competências não serão mais capazes de responder de forma adequada. Há que se trabalhar com a perspectiva de maior autonomia do servidor, com a desconcentração e descentralização do poder de tomar decisões com base em mudanças que ocorrem de maneira cada vez mais rápidas e menos uniformes. A frase que conheço que melhor descreve essa nova abordagem de gestão de pessoas foi dita por Steve Jobs: “Não faz sentido contratar pessoas inteligentes e dizer-lhes o que devem fazer; nós contratamos pessoas inteligentes para que elas possam dizer-nos o que fazer”.

Assim, acredito que a nova gestão de pessoas no setor público terá que aprimorar os mecanismos de atração e retenção de talentos, com maior capacidade de coordenação (estímulo à formação e integração) de competências, com foco em resultados. Qual a importância da liderança para a governança no setor público? Precisamos aqui diferenciar dois tipos de liderança nesse contexto: a política; e a que chamarei de sociotécnica. A liderança política é fundamental para o funcionamento das instituições democráticas. O processo de legitimação, como anteriormente mencionado, depende do amadurecimento do próprio processo democrático, com maior participação popular e exigência de compromissos mais claros dos candidatos, seguidos de acompanhamento e avaliação. Lideranças assim constituídas possuem, por definição, maior legitimidade e condições para promover os ajustes necessários ao bom funcionamento do aparato estatal.


O segundo tipo de liderança é a liderança que chamei de sociotécnica, reunindo em um só ente a responsabilidade de cuidar tanto dos aspectos técnicos/burocráticos como dos aspectos socioculturais que caracterizam as organizações públicas e as pessoas que as formam. Esse segundo tipo de liderança é responsável por manter e defender a integridade das instituições, preservando o que precisa ser preservado e colaborando com a mudança do que precisa ser mudado, sob o comando da liderança política.


Por tudo que foi dito, esses dois tipos de lideranças são fundamentais para o adequado funcionamento da governança no setor público, garantindo, por um lado, que as diretrizes sejam adequadamente comunicadas, controladas e avaliadas e, por outro lado, que a gestão ocorra dentro de parâmetros aceitáveis de funcionamento, com transparência e foco em resultados.




Odilon Neves é Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB), Mestre em Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), MBA em Gestão Estratégica da Tecnologia da Informação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, professor e coordenador de cursos de pós-graduação e de formação de executivos, tendo exercido várias funções de gestão em organizações públicas e privadas de grande porte.

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