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A melhor aliada dos gestores públicos é a capacitação, diz cientista politico




RGB Entrevista com Felippe Vilaça, cientista politico e servidor público federal. Confira!

RGB - Quais os maiores desafios, na sua visão, para a disseminação e consolidação das boas práticas de planejamento e governança nas compras públicas brasileiras?


Acredito que o amadurecimento das compras públicas brasileiras, pautado por boa governança e práticas adequadas de planejamento, passará por um caminho com grandes desafios na profissionalização dos compradores.

Essa profissionalização tem sido destacada pela literatura como a chave para o alcance de uma boa governança das aquisições. Para conduzir os atores, estruturas e processos em direção a contratações que impactem positivamente no alcance de seus resultados, as organizações públicas devem ser povoadas gestores e técnicos capazes de gerar valor público pelos procedimentos de compras.

Esse desafio possui várias dimensões, como a formação acadêmica e profissional na função organizacional de compras. Há avanços significativos no treinamento dos quadros profissionais, a exemplo da expressividade alcançada pela Escola Nacional de Administração Pública, com espaços em seus cursos dedicados à temática das compras, e pelas demais escolas de governo de excelência, além da consolidação de entidades privadas engajadas na oferta de treinamentos técnicos e de cursos nessa área.

Ainda assim, emerge a necessidade de mudança da mentalidade jurídico-procedimental. Os compradores tendem a construir sua carreira assimilando os procedimentos, mas nem sempre compreendendo a multidisciplinariedade das contratações, que envolvem disciplinas e temas além do sempre relevante Direito Administrativo.

Os agentes de compras acabam atuando com visão míope e procedimental, não visando ao alcance dos resultados esperados pelas compras, mas somente cumprindo os ritos regulamentados, por vezes com excesso de formalismo, ainda que não se garanta o interesse público ao final das compras. Compra-se mal, seguindo os procedimentos, e não se estimula a inovação. Essa ótica, similar em nível técnico ao que gerencialmente se denomina “apagão das canetas”, se fortalece pela estrutura deficiente da gestão das compras, especialmente comparada aos cada vez mais maduros órgãos e profissionais das áreas de controle interno e externo.

Dessa estrutura deficiente decorre a oportunidade de revisar as carreiras do serviço público, barreira enfrentada não somente pela área de compras e até mesmo no Governo Federal, mais estruturado. Há profissionais desempenhando as mesmas atividades, em órgãos públicos diferentes, com salários-base que alcançam uma disparidade de até 10 vezes. Essa diferença de remuneração não impede o surgimento de talentos em carreiras menos prestigiadas, mas isso se deve à dedicação e ao espírito público de alguns profissionais de excelência, compradores natos, e não a uma estratégia acertada de gestão de pessoas.

Esse cenário deixa claro que não há incentivos para aqueles funcionários com remuneração inferior se entregarem à vocação de compradores, e sim à fuga de responsabilidades para, como se buscassem uma bolsa de estudos, maximizarem seu tempo na preparação para os demais concursos públicos. Como resultado, órgãos menos estruturados não retém talentos e conhecimentos, enquanto os mais estruturados por vezes recebem bons concurseiros e precisam se esforçar para, lapidando, moldar bons profissionais.

Por fim, os desafios da profissionalização resultam na necessidade de desenvolver um sentimento de pertencimento de todos os atores da organização com as compras públicas. É comum se ouvir, nos corredores das repartições públicas, a máxima “todos os anos eu peço para comprarem uma coisa, mas sempre vem algo pior, atrapalhando minhas atividades”. Nesses casos, costumo indicar que a culpa está em quem não sabe pedir e não quis participar da contratação, posto que reforçou a tendência de se afastar do rito das compras – não incorporar conhecimentos técnicos no planejamento das contratações é garantir o seu fracasso. Sendo as compras o elo frágil na implementação de políticas públicas, como bem descrito na literatura brasileira, os agentes públicos tendem a se afastar de seus procedimentos, ainda que seus resultados dependam dessas contratações.

Com isso, somente se alcançará um planejamento adequado das contratações, com legitimidade dos processos e caráter colaborativo das reflexões, quando os atores das unidades organizacionais beneficiárias dos bens e serviços adquiridos façam parte do processo de compras e se sintam a ele pertencentes.

Esses pontos, a serem enfrentados pelas políticas de gestão pública, devem levar ao amadurecimento da governança das aquisições públicas, evitando a fuga de talentos da temática das compras, bem como o fortalecimento das áreas de contratação como instâncias de defesa do Estado e dos interesses dos cidadãos.


RGB - Na sua opinião, quais as principais contribuições da Lei 13.303/2016 para a Governança das Compras Públicas das empresas estatais brasileiras?


A Lei de Responsabilidade das Estatais iniciou sua contribuição para a governança das aquisições com a aproximação das empresas estatais com seus parceiros privados, considerando a redução da supremacia do ator público na relação contratual. Esse nivelamento tem levado as estatais a planejarem de forma mais profunda as suas contratações, reconhecendo que há outra parte relevante do outro lado do contrato, cujos direitos não podem ser afastados sob uma, por vezes “suposta”, ótica de interesse público, como possivelmente se fazia sob a égide da Lei Geral de Licitações e Contratos.

Disso resulta também uma menor interferência política sobre a continuidade das contratações, pois qualquer interrupção precoce de um ajuste contratual demanda um acordo entre as partes ou, se unilateral, o debate sobre indenização de custos de mobilização e de lucros cessantes, como em qualquer relação contratual saudável.

Além disso, a oportunidade de as empresas estatais regulamentarem internamente diversos procedimentos de licitações e contratos estimula a incorporação de inovações. Há espaço para experimentação, ainda timidamente explorado, mas certamente com potencial para criar e inspirar boas práticas.

Por fim, contrabalanceando sua maior liberdade de elaborar um regulamento interno para reger as suas compras, estudos vêm destacando que as estatais se beneficiaram do estabelecimento de requisitos de transparência, de rotinas de gestão de riscos e de controles internos, de critérios para seleção de dirigentes e de fiscalização de sua atuação pela sociedade e pelos órgãos de controle.

Além disso, a própria estruturação de colegiados gestores para as empresas estatais, contida nos modelos de Estatutos Sociais divulgados pelo Governo Federal, cria instâncias de controle interno sobre os planos de aquisição e as contratações da estatal, no limite de suas alçadas. Isso permite a avaliação multidisciplinar – típica de um colegiado de alto nível – e a tendência de que somente serão efetivadas as aquisições direcionadas ao atendimento da estratégia organizacional e envoltas pelos requisitos de atuação íntegra dos agentes públicos.

Dessa forma, é possível compreender o potencial das empresas estatais atuarem como exemplo de governança, de boas práticas e de integridade nas compras públicas, pautadas pela Lei nº 13.303/2016, disseminando aos demais entes e órgãos públicos as oportunidades de aprimoramento de suas práticas e de seus controles.


RGB - Como têm sido os trabalhos da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) nas compras públicas para o enfrentamento da Covid-19?


No cenário de enfrentamento da pandemia vivenciado durante a crise da Covid-19, com as unidades de saúde buscando formas inovadoras de ressuprimento de seus estoques e de viabilizar a estrutura logística para funcionamento de suas atividades finalísticas, é possível destacar a experiência da Ebserh com o uso das compras públicas como mecanismo de suporte ao atendimento assistencial e à manutenção da disponibilidade do campo de prática ao ensino e à pesquisa nos Hospitais Universitários Federais vinculados à estatal.

As compras realizadas pela estatal foram conduzidas por duas dimensões. A primeira, intensificando as aquisições locais, pelas unidades hospitalares, inclusive com compras emergenciais, sob orientação de boas práticas e de instrumentos de integridade pela Administração Central. As equipes de compras dos hospitais vinculados à estatal têm demonstrado um constante amadurecimento técnico e de gestão, tendo atuado de forma ativa e vocacionada para suportar e expandir suas atividades assistenciais no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, precisando inovar e se reinventar para vencer a ruptura global na cadeia de suprimentos, noticiada mundialmente.

Em complemento às compras locais, foi estruturada a segunda dimensão, de aquisições centralizadas, envolvendo principalmente equipamentos de proteção individual, medicamentos e outros equipamentos. Ao longo de 2020, foram firmados diversos contratos centralizados em benefício das unidades hospitalares, somando um volume significativo de orçamento efetivamente empenhado e de itens adquiridos.

Todos os contratos centralizados foram resultantes de processos transparentes de seleção de fornecedores, com uso de chamamentos públicos de propostas para contratações diretas emergenciais ou, após o ligeiro arrefecimento da crise, de procedimento licitatório. O respaldo concedido pela Lei nº 13.979/2020 foi fundamental para iniciar o enfrentamento da crise, bem como a proximidade dos órgãos de controle interno e externo durante os trabalhos das áreas que conduziram as compras centralizadas da estatal.

É importante salientar que as ações de enfrentamento da pandemia da Covid-19 continuam sendo empreendidas em 2021, com a Ebserh desempenhando um papel fundamental na saúde pública e, em especial, no ensino e na pesquisa, pela sua vocação. Espera-se, por intermédio das compras locais e das aquisições centralizadas, promover o suporte logístico e de infraestrutura capaz de manter e expandir a atuação engajada da estatal.


RGB - A centralização de compras públicas é uma tendência nacional e internacional como modelo de organização e gestão das compras governamentais, permitindo a obtenção de ganhos de eficiência operacional e atuando como estratégia de implementação de políticas públicas. Quais os principais resultados da centralização das compras de insumos e equipamentos médico-hospitalares conduzida pela Ebserh?


A dinâmica do processo da aquisição centralizada de insumos e equipamentos médico-hospitalares realizado pela Ebserh se confunde com o contexto e a trajetória desde a recente criação dessa empresa pública, que possui em seu modelo de gestão a oportunidade de implementar uma governança das aquisições capaz de fortalecer a função compras e a eficiência operacional da estatal.

É possível dividir a experiência da Ebserh com centralização de compras em quatro fases. A primeira foi uma introdução da temática na empresa logo após a sua criação e sua entrada em operação, em 2012, incorporando um modelo desenvolvido em parceria do Ministério da Educação – MEC com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE antes da implantação da estatal, com as compras sendo efetivadas de forma centralizada em benefício dos Hospitais Universitários Federais.

Em seguida, entre 2013 e 2015, houve uma expansão do modelo, com aumento no número de licitações centralizadas em busca de maiores impactos na economia de escala e na disponibilização de insumos e equipamentos de qualidade aos hospitais. Essa expansão foi paralela à incorporação de novas unidades hospitalares à rede da estatal.

No entanto, nos anos de 2016 e 2017, houve o arrefecimento da experiência e a crítica sobre o modelo adotado, que ainda não apresentava a maturidade para engajar a rede hospitalar em formação. Assim, foi constatada a necessidade de revisar esse modelo.

Por fim, a partir de 2018, a Ebserh entrou em um novo ciclo de experimentação e de preparação para um novo modelo de compras centralizadas, tendo incluído a sustentabilidade operacional em sua estratégia organizacional e dedicado uma iniciativa estratégica à estruturação desse novo modelo.

É possível ilustrar essa trajetória com valores: de 2012 a 2018, foram realizadas 51 licitações centralizadas sobre insumos e equipamentos médico-hospitalares, com valores estimados somando R$ 3,3 bilhões, tendo sido homologados R$ 2,5 bilhões. A economia potencial resultante dessas licitações foi de quase R$ 850 milhões, considerando a diferença entre os valores homologados e os estimados, estes com base nos preços anteriormente praticados nos próprios hospitais.

No entanto, pela baixa efetividade das aquisições dos hospitais com base nas compras centralizadas, que foram conduzidas em sua maioria pelo Sistema de Registro de Preços, a economia de fato obtida somente alcançou R$ 100 milhões – o que é um montante relevante, mas aquém do potencial dessa sistemática.

Com o novo modelo em estruturação, e principalmente pela oportunidade de utilizar as compras centralizadas como instrumento de suporte ao enfrentamento da Covid-19, a temática está em expansão na Ebserh, com previsão de ampliação do volume de aquisições conduzidas de forma centralizada.

Em 2020, um significativo volume dos recursos da Rede Ebserh destinados às compras públicas para seus hospitais foram resultantes de processos centralizados. Espera-se nos próximos anos expandir essa taxa de representatividade das compras centralizadas, capturando ganhos de eficiência operacional, representando economia de recursos e de custos administrativos, bem como maior qualidade e disponibilidade de bens e serviços.


RGB - A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos introduz no marco legal a exigência de instrumentos de governança como o plano anual de contratações e a gestão de risco para todos os órgãos e esferas do poder público. Além destes, onde mais você verifica na NLLC aspectos que exigirão um aprimoramento da gestão do macroprocesso de contratações?


Há relevantes impactos da nova legislação no macroprocesso de contratações. Neste momento inicial, destaco alguns que, se não receberem a atenção devida, não terão os resultados previstos: a profissionalização dos compradores, os estudos sobre ciclo de vida dos objetos, o princípio da padronização dos produtos e a instituição de instrumentos que permitam a centralização das compras.

A profissionalização é marcante no novo texto, que traz requisitos para designar os agentes públicos que atuarão nas compras, envolvendo temas como atribuições dos cargos e empregos públicos e a certificação dos profissionais como compradores públicos. É recorrente o debate sobre o quanto será desafiador alcançar esse nível de requisitos nos entes subnacionais menos estruturados, colocando em risco a prática dos dispositivos legais.

A análise do ciclo de vida do objeto passa a ser fundamental na busca pela melhor contratação e exigirá treinamento adequado para os agentes públicos envolvidos no planejamento das contratações. Na vida privada, isso é feito de forma simplificada: ao adquirir um veículo, verifica-se o custo das revisões, a ocorrência de manutenções, a expectativa de seu valor de revenda etc. Na esfera institucional, o impacto é maior e esses estudos precisarão ser registrados, para demonstrar o interesse público nessas decisões técnicas.

Os controles interno, externo e social precisarão compreender essa dinâmica, inclusive. É o caso de adquirir um equipamento médico-hospitalar com valor de venda mais alto do que a média, mas com custo de manutenção mais barata ao longo de 10 anos, incluindo o seu descarte, com fornecedor exclusivo dessa manutenção. No todo, é uma compra mais vantajosa com base no ciclo de vida do equipamento, e com garantia de disponibilidade de serviços assistenciais à população – mas jamais será praticada em larga escala caso a primeira unidade pública de saúde a adotar essa sistemática seja desestimulada por não ter adquirido o equipamento com valor de venda mais barato.

O princípio da padronização de produtos não é inédito, mas foi reforçado, precisando ser operacionalizado de forma estruturada e demandando uma atenção maior dos gestores públicos e técnicos envolvidos, que precisarão atrelar programas de integridade a essa ação. A possibilidade de limitar licitações a produtos padronizados requer essa atenção e irá facilitar a incorporação de soluções com qualidade adequada. A condução de processos de padronização em nível estadual ou federal, por órgãos e entidades altamente especializados, aparece como alavanca para aproveitar essa sistemática.

Por fim, a criação de instrumentos para centralizar as compras é um gatilho expressivo para o uso desse modo de gestão das contratações, cujo uso recorrente na gestão pública é difundido mundialmente. A preocupação sobre sua adoção está na forma, pois as compras centralizadas estão repletas de dilemas de ação conjunta, capazes de afundar precocemente alguns projetos com elevado potencial. Sem ações estruturadas e exemplos significativos, o apego aos arranjos locais de compras será mantido e a centralização se tornará letra morta na nova legislação.


RGB - Tomando por base a pergunta anterior, você poderia citar os principais desafios para os gestores públicos e como estes devem se programar para atender às novas exigências não perdendo de vista a entrega de resultados?


A passagem de legislação de compras é um evento complexo nas organizações públicas, mas creio que a experiência das empresas estatais na transição da Lei nº 8.666/93 para a Lei nª 13.303/2016 deve servir de benchmark para a preparação que os demais órgãos precisarão conduzir.

A melhor aliada dos gestores públicos é a capacitação, como foi com a transição nas estatais. A assimilação dos novos instrumentos de governança e das rotinas apresentadas pela nova legislação deve ser cadenciada e respeitar essa curva de aprendizagem das equipes envolvidas, que certamente será acelerada na busca por ferramentas atualizadas oriundas da nova Lei Geral de Licitações e Contratos. Cabe às organizações públicas investirem massivamente em treinamento, inclusive da Alta Administração, para que haja uma virada efetiva e um aproveitamento das novas diretrizes legais.

É importante destacar que parte dos conceitos se mantém: os princípios constitucionais são os mesmos e visam alcançar os objetivos costumeiros, relacionados à aquisição eficiente e efetiva de bens e serviços capazes de atender à demanda institucional, representando o alcance do interesse público por intermédio das contratações. O risco de interrupção de atividades cotidianas é reduzido e não deve tirar o sono dos agentes públicos.

Talvez o maior desafio ainda seja mudar a mentalidade dos gestores e compradores públicos, que podem se manter agarrados a uma construção teórica, prática e jurisprudencial anteriores e ultrapassadas, evitando a exploração dos novos caminhos. Esse ainda é o maior desafio após a implantação das compras pela Lei nº 13.303/2016, representado pelos inúmeros regulamentos internos das empresas estatais que se assemelham a cópias da Lei nº 8.666/93.

Sem empreendedores públicos para explorar os novos caminhos da nova Lei Geral de Licitações e Contratos, os controladores manterão a régua com o calibre da Lei nº 8.666/93 e vai vencer a tese de que o problema nunca foi a legislação, mas a sua aplicação. Se essa profecia trágica se realizar, os cidadãos continuarão a vivenciar as falhas na implementação de políticas públicas decorrentes das compras e essa temática se manterá como o elo frágil na máquina estatal.



Felippe Vilaça é cientista político (UnB), especialista em Gestão Pública (Enap) e Mestre em Governança e Desenvolvimento (Enap). É servidor público da Defensoria Pública da União (DPU) cedido à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Também é palestrante e instrutor em logística e compras públicas, área na qual atua há 15 anos.

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